Acomodação


 Era essencial que seus pés não tocassem o chão, os ouvidos se concentrassem na chuva que caía ininterruptamente e que o sono viesse logo. Sentia o cansaço do dia estressante, do trânsito caótico, das cobranças e da rotina estafante. Ele não estava lá, esperando-a como sempre. A casa permanecia vazia, nenhum barulho de panelas e nem o cheiro delicioso do jantar de todas as noites.
“O que fiz da minha vida?” ela perguntava sempre que notava o vazio da casa. Não fora honesta ao dar o ponto final, sabia que não estava pronta para isso. Afinal, ninguém está pronto para sofrer os tais golpes do destino. Não queria recordar a conversa, as reticências, os ânimos alterados e, no fim, o silêncio. O vazio.
Levantando-se da cama, resolveu sair de casa para simplesmente andar. Não importava as dores físicas e emocionais, nem o cansaço. A chuva era salvadora.
Pegou o casaco e saiu. Andou pelas ruas movimentadas, sem ouvir ou sentir absolutamente nada. Não ouviu os gritos quase surdos de uma voz conhecida, até que a tocasse. Ao se virar era ele. Impassível e imprevisível, sereno e doce ao mesmo tempo.
Falaram de coisas triviais, se distanciando do movimento. Chegando à porta da casa, se olharam pela primeira vez depois de muito tempo, mas alguma coisa havia mudado. O sentimento obsessivo de antes se transformou em uma serena lembrança de algo distante, irreal. Entendeu que não era a dor da perda: era acomodação. Ela não precisava dele para amar e ser amada, mas sim para satisfazer seus caprichos juvenis.
 Suas dores sumiram instantaneamente. A luz no fim do túnel significava que ela estava livre, para amar e para permitir que ele seguisse seu caminho. Sentindo essa leveza, despediu-se dele com um sorriso e partiu.
O amor é livre, diferente da acomodação ou do sentimento de posse. Amar é se sentir feliz ao ver o outro feliz, livres como pássaro, mas unidos por um laço tão forte que nem o tempo pode separar.

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